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MÚSICA

ISABEL LENZA: ouro aberto

ISABEL LENZA: ouro aberto

05 e 19.02.18: seg às 20h

Isabel Lenza – Ouro

Por Alexandre Matias


A velocidade é lenta e a percussão nos conduz como o deslize de um barco em um rio. O oudi árabe e o baixo marcado pesam na atmosfera da canção como o calor de plantas ao redor deste curso d’água musical, ponteado por um teclado elétrico de vigília enquanto cordas dramáticas envolvem a voz protagonista. Isabel Lenza canta hipnótica sobre sintropia – a função que determina a ordem de um sistema – de forma clara, enfileirando afirmações e abrindo o coração e a cabeça para o universo. A faixa de abertura de Ouro torna-se um altar para sua voz estreante, tecendo arabescos musicais como fractais de positividade.


Mas se soa solene, é apenas por ser a abertura, a porta de entrada. Ouro é uma viagem para dentro de um universo musical em expansão, que Isabel Lenza propõe ao ouvinte – olhando para dentro de si ainda que encarando o horizonte, como em sua capa. Novata nos palcos – enquanto escrevo este texto ela não fez nenhum show em sua vida -, ela é fruto de uma nova abordagem artística, que inverte a ordem tida como natural da produção musical. Isabel nasceu compositora antes de cantora e trabalha nos bastidores da indústria da música há anos, além de dominar a linguagem do vídeo. Essa subversão dos fatores foi crucial para que ela conseguisse atingir o ponto descoberto neste disco de estreia: a descoberta de sua própria voz.


Ouro é fruto de uma busca pela própria verdade, um período doloroso que atravessou o fim de um relacionamento e uma morte em família para ganhar forma como processo de autocura. Ela veio como música e aos poucos frases anotadas e cantaroladas ao celular ganhavam estrutura de canção no computador e a partir daí vida própria. Assim, sem outros compositores ao seu lado, Isabel começou essa viagem para dentro de seus sentimentos, no período mais conturbado de sua vida, que incluiu a morte de seu pai, Artur Lenza, apaixonado pela música que trouxe esta cultura para o convívio familiar, seja nas histórias de amizade com outros músicos na juventude, coleções de discos e nas trilhas sonoras de viagens de carro pelo país. Ouro é dedicado a ele.


“Testemunhar um processo de morte trouxe fortíssimas reflexões sobre minha própria vida, no momento em que ela já mudava drasticamente”, lembra Bel. “Choque direto na raiz de tudo. Tudo isso junto foi uma quase-morte minha. E o que não morreu brotou como essência pura num processo oposto, de muita vida, e incontível. Diz bastante sobre o início da escavação do meu ouro”.


A substância que batiza o disco, metal precioso dos alquimistas cujo valor reflete-se tanto na vida material quanto espiritual, foi surgindo no decorrer do processo, seja na busca dessa essência individual, na mineração do bem próprio mais raro quanto no contato com a técnica japonesa kintsugi, que repara recipientes quebrados com a inserção do ouro nas rachaduras, tornando-os ainda mais resistentes – e belos – do que eram originalmente. Isabel precisava aceitar que aqueles sentimentos se materializariam em canções e que aquelas canções só poderiam vir ao mundo com a sua voz.


E assim foi. Depois de conselhos como produtores como Kassin, Gustavo Ruiz e Gustavo Lenza (um dos principais engenheiros de som do Brasil, seu irmão mais velho e responsável pela mixagem de Ouro), ela encontrou seu parceiro de estúdio no músico e produtor Fabio Pinczowski, que a ajudou a arregimentar uma banda formada pelo guitarrista e tecladista Maurício Fleury, pelo baixista Marcelo Dworecki (ambos do Bixiga 70) e pelo baterista Bruno Buarque (que tocava com Céu, Karina Buhr e hoje toca com Anelis Assumpção), que ainda contou com participações do guitarrista Pedro Sá, do arranjador Conrado Goys e dos vocais de apoio da própria Anelis, Camila Brasiliano e Renata Terepins, esta última também autora da foto da capa do disco. Essa família ajudou sua semente brotar e sua cria crescer. Foi a sombra e água fresca que o jardim de Isabel se tornasse uma frondosa floresta instrumental, com baixos synth, mellotrons, sítara, programações, cordas, violões, escaleta, além dos instrumentos iniciais dos músicos envolvidos, todos multiinstrumentistas.


 O templo quase oriental erigido à abertura do disco é interrompido pelas batidas sintéticas que abrem a irresistível “Partícula de Estrela”, hit new wave que mistura referências telúricas, cósmicas e místicas, afinal, com ela mesmo diz “aqui no meu planeta tá puxado transcender” – a música vai se desfazendo eletrônica quase ao final, entre ecos de sintetizador e guitarras fantasmagóricas. O clima muda radicalmente mais uma vez com o reggae apaixonado de “Vamos Respirar”, que também conta com cordas esparramando camadas de drama sobre o groove jamaicano e a letra contemplativa.


A vibração espacial segue pelo primeiro single, a transcendental “Cinematográfico”, que começa entre o oriente e a música eletrônica para ganhar corpo em um crescendo de rock moderno. A cada faixa, ela vai estabelecendo seus limites e deixando bem claro que ela é quem manda em seu território – e ela vai para onde quiser, o que ela reforça na letra do delicioso reggae “Incontível”, que quase batizou o álbum. “Na minha missão só tem eu, só cabe eu”, reforça, convicta. “Nem vem atrapalhar os meus planos, meu tempo é meu e eu sou incontível”.


O lado B do álbum continua no Caribe, mas em praias brasileiras: “Isso é Castigo” e sua essência paraense convidam o ouvinte para bailar enquanto tortura-se entre o prazer e a dor de sentimentos dúbios. A balada “Amalgamado” segue caminhando nesta corda bamba dessa contradição que é o relacionamento a dois – dá para ficar junto separado?


“Amor é Amor” retoma a toada latina enquanto abre-se para as formas de amar que finalmente ganham aceitação, enquanto reforça sua própria motivação: “Minha identidade não te ofende, sua identidade não me ofende.” A delicada “As Coisas Querem” amplia essa aceitação para além dos seres vivos e mais uma vez Bel abraça o cósmico, o intangível, o invisível.


“Temperado e Ameno” conclui seu disco de estreia com essa convicção individual e universal: “Não se ressabie se eu tiver que ir e voar solta sem olhar pra trás”. Um mergulho num abismo existencial recompensado com a autodescoberta de sua própria arte, Ouro é o nascimento de uma nova artista, certa de suas convicções e motivações. Uma artista deste século.


Alexandre Matias é jornalista e dono do site www.trabalhosujo.com.br

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